Texto do sketcher Fabrício Porto
Sketch na chuva.
Diz um jovem poeta de nossa terra que 'lágrima de índio, quando cai, arrasa mondubins, alaga aguanambis... cariris todos debaixo d´agua, tabajaras... quanta mágoa em tua taba'. Trata-se de uma bela canção que conecta o inesperado drama que sempre é a chuva em Fortaleza e nossa porção cultural indígena, que nomeia nossas ruas e bairros. Acostumados ao religioso sol que nos invade a pele já às seis da manhã, recebemos as chuvas de começo de ano como uma desorganizadora da vida feita em torno da forte e constante luz equatorial que incide em nossos quatro graus de latitude sul.
Assim, sob o chover e no bairro com nome de índia, é que se desenrolou neste sábado, 27 de janeiro, o 24º encontro Urbansketchers Fortaleza. Uma rara manhã de chuva branda e constante, com temperatura na casa dos polares 22°C (é isso mesmo, caros sketchers do sul), que obrigou os desenhistas à abrigarem-se sob pequenas palmeiras, barracas de vender coco e beirais de antigas casas da Praia de Iracema, local escolhido para o encontro e espaço afetivo por excelência da capital cearense.
Para um dia chuvoso, é possível dizer que houve êxito absoluto ao se levar mais de uma dezena de cearenses para a rua numa manhã de sábado para desenhar. E desenhamos, como sempre, à moda alencarina, rindo-se de nossa desgraciosa situação, amontoados e espremidos sob qualquer abrigo possível. Não raro, trabalhadores da praia, a quem a chuva não espanta, paravam para examinar aqueles grupos que se aninhavam sob as escassas cobertas e desenhavam em conluio. 'Muita vontade de desenhar... nessa chuva?!' - era o pensamento por trás das expressões de surpresa e graça dos passantes.
Desenhamos, no entanto. Alguns inserindo sombras que ali não estavam e azuis celestes que não compareceram. Outros sendo fieis aos tons pasteis que o tempo nublado impõe. O casario dos anos cinquenta, de fachadas coloridas, ficou menos vivo. O antigo edifício São Pedro, testemunha de uma época de ouro do bairro e hoje depauperado pelo abandono, ganhou aspecto ainda mais obscuro sob o intruso cinza do nublado. Poucas figuras humanas passavam na calçada para nos servir de modelo e nos presentear com escala e humanização.
São os registros de uma atípica manhã cinza em que tivemos momentaneamente amputados nosso sol e nossa vibrante vida urbana. Vendo os desenhos dos colegas, penso que esta circunstância está sutilmente expressa nos resultados. Naquele dia, registramos a transformação da paisagem pela chuva, em seus diversos aspectos. Registramos o que ocorre quando cai lágrima de índio.
Fabricio Porto, 29 de janeiro de 2018.
*A música citada no começo do texto é Lágrima de Índio, do cantor e compositor cearense Daniel Medina.
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