Estou com os dois livros do Marcus Vinicius Batista.
O que separei para ler no banheiro é QUANDO OS MUDOS CONVERSAM, uma seleção das
crônicas publicadas no Jornal da Orla, entre 2007 e 2012, outros tempos, outros
problemas. E mesmo lidas – uma de manhã e outra à noite - em um ambiente de tensão, trazem o olhar de
atenção carinhosa sobre o outro e sobre a cidade e seus personagens, vivos e
mortos.
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As
capas dos livros do Marção e da Beth |
O segundo, a ser editado mas o primeiro a ser lido é
O LOBO, O URSO E A CURA, escrito
parceria-parceria com a sua esposa, a também jornalista Beth Soares. É o relato
pessoal, visceral, algumas vezes atônito, às vezes encharcado de incompreensões, mas sempre permeado
de muita luta e persistência – ninguém larga a mão de ninguém - diante do
diagnóstico de lúpus que Beth foi acometida. É a jornada, de mais de dois anos,
por laboratórios, consultórios, hospitais, UTI´s, farmácias e a tentativa de se
salvar da burocracia, que o Estado implanta, com uma perfeição assustadora,
para que os doentes resolvam, depois da revolta, dos xingamentos, da
anulação, se curarem por conta própria.
Comprei o livro no dia do lançamento no charmoso Saluca
Bistrô & Café, no canal 5 – precisam conhecer Santos, o plano urbanístico
de Saturnino de Brito e aprenderem a se orientarem pelos números dos canais - e
já na fila dos autográfos – desenhando e andando – um Marcão foi grafado na
primeira folha do livro, onde ele e a Beth depositaram os seus delicados
autógrafos.
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O
desenho do Marcão e os deliciosos autógrafos |
Não há exagero ao chamar o Marcão de Marcão, pelo
tamanho do corpo, do coração e da gentileza.
Foi uma tarde muito boa e recomendo que todo
lançamento de livros devam ocorrer aos sábados, em um bar e que seja
obrigatório encontrar os amigos e bater papo com o Leandro Marçal, a Renata
Godoi Mota e a Raquel Gomes, e também, se vocês não os conhecem, mais um motivo
para virem até Santos.
Na mesma noite, depois da peça TRAGA-ME A CABEÇA DE
LIMA BARRETO – por favor, assistam! – li o prefácio, escrito pelo médico que
acompanhou a jornada e que no final, foi sugado, com suavidade para dentro do
rol de amigos.
No dia
seguinte fui à praia levei pouca coisa, porque nas praias de Santos você
encontra todo mundo e conversa com todo mundo, mas tenho sempre comigo caneta e
caderno, mas levei também o livro ainda quente de curiosidade, para conferir as
primeiras páginas, enquanto ficava de olho na filhota e no sobrinho, brincando
de se transformarem em crocrete de areia.
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Olha
o sorveteiro, mas não era da Rochinha |
Fiz o primeiro desenho, quase sem querer, quando uma
moça quis saber qual era o livro que estava lendo e depois que fiz o segundo –
e gostei - , o livro se transformou, quase de imediato, em um diário gráfico
sobre um diário de dores e preocupações.
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O
Canal 3 estava assoreado e havia montes de areia para a alegria da meninada |
Na praia tem sorvete e água de coco gelada, cara,
mas tem.
Então abandonei o caderno de desenho por uns poucos
dias e permiti que o livro fosse lido, sem pressa, entre um traço e outro,
buscando fôlego para poder ganhar a empatia necessária e torcer que tudo tenha
se ajustado da melhor maneira possível, que todos estejam bem, que o Urso nos
proteja a todos e o Lobo tenha sido vencido.
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No
banheiro da casa da Sogra |
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Carol,
colega de trabalho. |
Mas preciso reconhecer que não foi a primeira vez.
Fiz isso no livro do meu amigo Leando Marçal, NO CAMINHO DO NADA, mas só
durante a na noite de autógrafos. Pensando bem, talvez adote esta estratégia
para me defender da Flávia, que estabeleceu que um livro novo só entra em casa,
quando um outro sair. Com um desenho, um registro, o livro fica muito pessoal,
sem a possibilidade de ser descartado, trocado e talvez assim a minha
biblioteca se mantenha intacta.
Muitas das crônicas foram lidas no ônibus. Muitos
desenhos foram feitos no ônibus e desenhar no livro que se está lendo, facilita
muito.
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Indo
ao cinema, no Gonzaga |
Porque tudo muda muito rápido dentro do ônibus. Quem
estava de pé, senta, quem estava sentado, desce, as pessoas mudam de lugar, por
causa do sol, da chuva, porque está incomodado com quem está sentado ao seu
lado, porque entrou alguém conhecido e foi colocar a conversa em dia.
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Tanque
de guerra para tempos de paz |
Em vão, tentei quando estava mais sossegado, no
descanso do lar – comercial de margarina - ilustrar o livro, com pequenas
anotações, mas sem sucesso, desisti.
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Desta
gostei um pouco |
Sou um pouco melhor – auto-elogio é tão feio - observando
o mundo de frente, como de frente ambos enfrentaram uma jornada cheia de altos
e baixos, que trouxe muito cansaço, para quem sofria as injeções e para quem
cortava a cidade até a porta da UTI.
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Menino
dormindo no colo da mãe, no ônibus em Cubatão. |
As pessoas se surpreendem e sempre me perguntam se é
difícil desenhar no ônibus. Já fui chamado até de ninja, mas digo que cada dia
que passa, andar de ônibus, depender de transporte público, não é para os
fracos.
Na minha cidade, Cubatão, talvez seja ainda pior.
Explico. Temos uma empresa de ônibus, que detém a concessão do serviço, mas este serviço não é interligado com o transporte
metropolitano, então, nada de baldeação e ainda há o transporte alternativo,
que de alternativo não tem nada. Percorre os mesmos itinerários do ônibus e
quase sempre com o ônibus preso no retrovisor e para piorar, a empresa de
ônibus atual perdeu a última concorrência e o serviço que não era nenhuma
maravilha tornou-se um verdadeiro martírio, com ônibus sem horário certo e
quebrando em qualquer esquina. Terror, terror e terror, com os ônibus, velhos e
sucateados, sacudindo sem parar,transformando uma viagem de um pouco mais de
cinco quilômetros em uma verdadeira aventura, sem final esperado. Coisa para
samurais de todas as cores.
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Alguém
tão grande como o Marcão. |
Na maioria dos veículos do sistema alternativo, a
cadeira ao lado do motorista fica vazia ou ocupada por algum conhecido, que vai
debatendo com o motorista os rumos da política cubatense e a ultima decisão do
Ministério Público, que exige da prefeitura, a retirada das vans de circulação.
Sentei neste lugar mas virei o rosto para o outro lado, para o retrovisor.
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No
retrovisor, o que vejo pela frente. |
Até pouco tempo atrás, me recusava a andar de van,
de transporte alternativo, mas acabei me rendendo, com medo do implacável tic e
tac do relógio de ponto digital instalado recentemente.
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Chegar
no horário |
É preciso chegar no horário e sair no horário.
Esperar o consumo das horas, esperar a vida passar e registrar tudo certo,
inclusive o horário do almoço e ao depositar o dedão, ouvir de volta,
mecanicamente, que está tudo correto, que você teve um bom dia, que você não
esteve internado e o seu corpo não está inchado.
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Chegar
no horário |
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Sair no horário
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Chegar em casa. |
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Sacolejar um pouco |
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E lembrar, que é dia de balé |
Alguns desenhos estão fora da ordem que foram
feitos, embaralhando as páginas, embaralhando a vida em sua surpreendente desordem, mas espero que este relato sobre páginas alheias seja uma fagulha em
tua curiosidade, um convite para percorrer, mesmo que tatibitate, por passos
vencedores, e que possa-lhe dar a noção da emoção que os autores fizeram
questão de depositar em cada palavra, em cada crônica e lhe façam buscar o
livro na livraria de rua mais perto – meu amigo José Luiz Tahan agradece.
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E a filhota está esperando para dar seu pliês. |
Porque
é na rua que a vida acontece, onde encontramos as pessoas, onde nos
reconhecemos nos outros, no caminho de volta para casa ou quando levo a filhota
no balé, para que ela dê um monte de saltos e piruetas, enquanto fico, mais de
uma hora no sofá florido, agora encapado com uma fronha azul turquesa.
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A filha e a neta da proprietária do Balé |
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Em
um canto, em um dia de chuva |
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No
sofá, agora azul |
Ao mostrar o primeiro desenho aos dois e mesmo
devendo um desenho da Beth, fui autorizado, de imediato, com dois grandes
sorrisos abertos ao sim, ao sim das palavras, ao sim da comunhão. Toda boa
palavra deve ser repartida na mesma dose do pão.
E nas palavras do Profeta Gentileza, que gentileza
gera gentileza, tudo neste livro, guia deste relato, se resume a isso, na
gentileza de dividir conosco a busca da melhor solução, a gentileza de mostrar
que o carinho é imprescindível para as almas, que mesmo fortes, não se querem
rígidas, gentileza em não se importarem de ter boa parte do livro reproduzido
para contar uma outra história e na gentileza, de permitir que um livro tão
pessoal, tão intímo, fosse aberto e finalizado com as palavras de outra pessoa,
que uma poeta – a Madeleine Alves é maravilhosa - acentue a trajetória
percorrida por ambos, com palavras e sentimentos de acalanto e conforto.
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As
mãos de uma senhora segurando a bolsa e o poema final da Madeleine |
Pelo pouco que os conheço, me permito acreditar que
eles confiam na pele fina e resistente do amor, na promessa apalavrada de
eternidade, que se mostrou flor e perfume nos momentos de entorpecimento mas
também na certeza que mesmo doendo, iria passar, como realmente passou quando o
Lobo feroz voltou ao seu lugar de insignificância perante aos deuses, o Urso
urrou de alegria e a cura embarcou, em uma viagem por outras terras e pelo
corpo transformado de Beth e o mundo, também em viagem, fez, neste dia, uma rotação
mais alegre, muito mais suave, como deveria ser todas as boas canções.
Carlos
Roque Barbosa de Jesus
22 de
outubro de 2019
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